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Poesia e Literatura
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ANTOLOGIA PÓRTICO

 

Organizador: Goulart Gomes

 

Pode-se afirmar que uma antologia que tenha consistência literária implique num ato crítico.

Nos anos de 2001 e 2002 deste século houve uma onda de coletâneas, todas anunciando os melhores contos, poemas, romances e ensaios do século anterior. O resultado dessa pesquisa originou vários livros, dos quais alguns figuraram nas listas dos mais vendidos. Entretanto, a inadequação – para usar um eufemismo – dos critérios que justificassem as escolhas feitas deixaram os estudiosos de literatura insatisfeitos.

De qualquer sorte, há um desafio encerrado na palavra “antologia”, que significava, em sua origem, seleção de flores: só os melhores espécimes deviam ser colhidos para o “florilégio”. Esse objetivo nunca foi fácil. Não há quem queira organizar e reunir um conjunto de textos sem alguma base crítica. O organizador, reconhecido e premiado poeta Goulart Gomes, ao reunir poetas numa coletânea, selecionando-os, já realiza um ato crítico.

Nesse livro comparecem quinze poetas baianos, e um alagoano-baiano, de diferentes gerações epocais. O objetivo parece ser o de reunir em um volume poetas não tão conhecidos em termos nacionais, e mesmo, baianos, oferecendo ao público-leitor uma alternativa para o contato com poetas relativamente fora do Panteon dos até aqui considerados “maiores”. Não parece ser o foco da edição uma avaliação de “maiores” ou “melhores”, mas, antes, deixar emergirem as características intrínsecas da poemática de cada um dos poetas, sem a preocupação de uma recepção pirotécnica pelo mercado literário. E isto já implica um ato crítico.

Convidada a apresentar a coletânea, aceitei sem hesitação, desde que venho acompanhando o trabalho de Goulart Gomes, inclusive pela Internet, e foi daí que comecei a entrar em contato com sua atividade literária, inclusive como promotor da esquiva arte que é a poesia.

O escrever versos não coincide com o fazer poesia, sabe-se, desde uma primeira leitura de textos em forma poética. Mas daí até fazer-se justiça e incluir-se ou não os pretendentes a poeta num determinado cânone é difícil. Mesmo porque não possuímos, de pronto, numa leitura inicial de cada poeta, a dimensão de sua produção como um todo. Por isso é que, depois de ler e fazer algumas anotações de cada grupo de textos poéticos dos autores que comparecem nesta coletânea situo-me simplesmente como leitora, e leitora atenta, sem a pretensão de emitir juízos de valor. Farei uma breve descrição dos autores aqui incluídos por sua ordem de aparição – alfabética – nesta reunião de textos poéticos.

Argemiro Garcia debruça-se na perquirição de um mundo paralelo, a ser des-Antologia do Pórtico 3, coberto pelas sendas da poesia. Daí a fuga de uma primeira camada de realidade. Evoca e convoca mundos invisíveis, tornados possíveis pela ação poética, como se lê em “ Meus anjos” (p. 12). A ironia, mesmo, o sarcasmo (“Caleidoscópio”, p.13) dirigem-se para a busca de uma saída para o impasse de viver (v. “Janelas”, p. 14). Demonstra um gosto especial pelo poema curto e uma evidente preocupação com o tempo, o qual enfrenta, poeticamente, com o recurso concretizador da metonímia, como se pode observar em “Chuva de sal” (p.19), em que a água corresponde à realidade do existir no mundo.

Carlos Valadares, na seleção aqui apresentada, labuta com uma possível identidade no coletivo onde se busca, embora a essência de seu ser resista a desvelar-se (veja-se, especialmente, “necrológio”, p. 22). é o passado que lhe pesa, as “oficinas do sofrer”, onde mergulha inexoravelmente, como em “fênix” (p. 24). nesse poeta, o amor é perscrutado como uma saída ou uma redenção. o que ocorre, nesse trajeto, é o permanente reconstruir-se da vida – atravessada pela visão político-social da realidade e seu entorno (particularmente em “incógnita” (p.26)). no belo poema “cinzas de outubro” (p.27), mergulha no dilema do silêncio, numa atitude de luta contra o que resiste mostrar-se sob forma de linguagem. o passado se mostra como permanente ameaça na totalidade desta sua amostragem de poemas (o que é tematizado em “quase pânico” (p. 28)).seus poemas, como um todo, demonstram a inquietação diante da realidade e a sua perquirição, diante da sombra inquietante de um viver ameaçador, corrosivo, destrutivo  como é tematizado em “sem vida”, (p.31).

Djalma Filho é dramaturgo, como se pode ler em sua nota biobibliográfica, e o tom de sua poética deixa entrever a inclinação para o tom e a atmosfera dramáticos.A par desta, observa-se sua incursão pelas sendas do passado, o desdobrar-se de uma morte em vida, como em “A foto na parede” (p.32) e em “Os últimos primeiros” (p. 37), no qual se depreende a presença de um deus humanizado, e em “Reforma” (p. 33), onde esse traço se mostra na experiência amorosa. Esta é uma outra constante em seus textos,

como se pode ler em “Amigos antigos, velhos namorados” (p.35) – poema tecido na ausência do ser amado, sem retorno no tempo. Sem dúvida, a preocupação com a passagem do tempo subjaz “dramaticamente” à temática deste poeta.

Goulart Gomes vem de uma constante e profusa produção literária. Dir-se-ia ser esta a sua única forma de existir. Em “O analfabeto ideológico” o poeta traz à presença do leitor a figura nefasta que dá título ao poema, um ser destrutivo, incapaz de enxergar por detrás das aparências, ao qual o passado nada ensina e, por isso mesmo, rasura a possibilidade de um futuro redimido. Outra constante na poesia de Goulart é a temática erótica, da qual, entretanto, evola uma realidade que ultrapassa o mundo dos sentidos (“L’Ana”, p.45). A preocupação com a inexorabilidade do tempo, presente em quase todos – se não todos – os seus poemas incluídos na coletânea, é claramente realizada em “Tempo farpado” (p. 46) – que perscruta o cotidiano do ser humano numa espécie de antropofagia. No entanto, busca subjugar o tempo, pelo ato poético de teor lírico – no poema antes nomeado pela metonímia “pétala”. O poeta percorre recursos poemáticos diferenciados: da economia verbal de poemas como “Poetrix”, primo ocidental dos haikais, a poemas provindos da tradição ibérica, como é “O touro” (p.48). Belos momentos de lirismo em poemas como “Alunissar” e “Istmo” (p. 50).

João Augusto Sampaio. O ludismo é parte essencial de seus poemas – como se estivesse a escolher um modo de não chorar, seja pelas experiências coletivas, seja pelas individuais. Assim é que vai transmutando o contingente no universal (v. “Blues de ninar”, p.58-9) e o universal no contingente (“João é Adão”, p. 60). Retira seus Antologia do Pórtico 4, motivos poéticos do cotidiano ou do trivial (“Cacetinhos voadores”, p. 55) e, no entanto, não os banaliza. Ao contrário, instala-os como ponto de partida para sua prospecção poética.

                                   

José Inácio Vieira de Melo. Um dos mais jovens na coletânea, conheço a sua poesia dos dois livros já publicados. Na seleção apresentada mostra uma de suas marcas inconfundíveis, qual seja o intenso lirismo permeado a seu espaço de origem no sertão de Alagoas. Este poeta se move no mundo das emoções e experiências vividas – de onde retira faces ocultas que se revelam pelo seu cantar, como o leitor perceberá com mais nitidez em “Deserto” (p.63-4). Sua busca subterrânea vai adentrando um mundo de mistérios do qual extrai seus poemas, ultrapassando a fronteira da realidade efetiva (mais marcada, aqui, em “Espelhomem”, p. 65) e, após o longo percurso, a poesia o premia com sua presença. No já antológico “Epitáfio para Guinevere” (p. 68 – publicado no seu livro Decifração de abismos) – num ato metonímico centrado na “égua de olhos azuis” – nos defrontamos com as realidades das perdas humanas, irreversíveis, uma característica, aliás, de sua poesia como um todo. Daí a procura de uma possibilidade do viver selvagem e puro, distante das arquiteturas urbanas.

 

Loreta Valadares. De modo geral, a dicção dessa poetisa é incisiva, cortante (eu diria, mesmo, viril) a despeito do substrato lírico, como se observa em poemas como “Vértices...” 1 (p. 74). Sua busca é a da essência da vida, debruçada no devir, com a ansiedade de quem procura reter o instante (veja-se a metáfora da flor) que passa e transformá-lo. Diante da inanidade das ações humanas, coloca em oposição uma realidade primeira àquela essência dos atos e fatos da vida humana e social. “Coração...” e “Tento...” (pp. 77 e 78) são exemplos convincentes da tendência temática indicada na poetisa. Também ingressa numa espécie de ludismo verbal com o qual dribla o banal do cotidiano (v. particularmente “Sono...”).

 

Luís Flávio do Prado Ribeiro. Em versos curtos, este poeta tira bom proveito da observação e relato das ações humanas as mais triviais, que irão revelar-se, pela ação poética ela mesma, como fundamentais (o que fica óbvio em “Nossa parte”, à p. 83).

Passeia pela mitologia, quer ocidental, quer oriental, para chegar a seu lugar de origem, a caatinga, realizando uma como que fusão dos universos das experiências humanas (“Universo”, p. 84). A preocupação com o social se infiltra em seus versos, como se lê em “Samba para o Recôncavo”, p. 88 e “Homenagem a RPBA (samba)”, p.90.

 

Rose Rosas. Parte da experiência amorosa, transportada por um eu lírico de feição erótica (v. “Bruxaria”, p. 95 e “Saudade”, p.99), evidenciando a influência temática e formal do Romantismo como escola. Em termos da vivenciação propriamente amorosa, o desejo é de imersão plena no Outro (ver, como exemplo dessa característica, “Boca Suja”, p.97). A sua preocupação com os aspectos político-sociais da sociedade em que vivemos é expressada em poemas como “Saldo de guerra” (p.98). Ressalte-se essa preocupação como tendência dominante em sua rememoração do passado. Outra de suas características é o lado humorístico da vida, mais que humorístico, burlesco (“Ortodentaria(mente)”, p.96).

 

Vladimir Queiroz. Este poeta encerra a coletânea. Da qualidade proteica da vida retira sua força elocucional. Essa inclinação não o impede, em outros momentos, de 1 Cito o primeiro vocábulo do primeiro verso de cada poema, já que esta poetisa não dá título a nenhum deles.

Antologia do Pórtico 5, uma apropriação lírica da realidade, predominante ma maioria dos poemas, provinda de uma geografia rural – marcante em quase todos os seus poemas (ver, particularmente,

“Canto da terra”, p. 103). Daí provém o caráter pictórico, quase arcádico, de suas incursões nas realidades que evoca. A essa marca inconfundível de seu estilo se mesclam

outras geografias, como se verifica em “Global”, à p. 107, ressaltando, também a vivenciação do dia-a-dia urbano (“Zunido”, p. 110).

Estão aí, se bem que de modo sintético, alguns aspectos da poesia produzida pelos poetas aqui comentados. Espero ter sido justa nas minhas observações. Mas o que mais espero – digo-o neste momento final – é que cada um desses poetas se aprofunde na experiência crucial da poesia, que exige dos que a elegeram trabalho e trabalho.

Porque emoções, sentimentos, idéias – experiências humanas em geral – todos as vivenciamos. O que faz a diferença é o modo como as articulamos na folha em branco.

Lembra-me Jorge de Lima: “Somos todos poetas, / natos poetas. / Os que têm voz, porém, podem cantar”.

Salvador, 7 de junho de 2003.

Maria da Conceição Paranhos

Antologia do Pórtico 6

                                                       

                         

Argemiro Garcia

Miro é um desses poucos poetas que conseguem exercer a poesia com beleza e simplicidade. Também fotógrafo, sabe muito bem retratar o cotidiano, buscando-lhe os detalhes, as pequenas coisas que, através da sua pena, tornam-se grandes, ocupando o espaço real que lhes pertence. Goulart Gomes

 

Argemiro de Paula Garcia

Filho, geólogo paulistano, nasceu em 1960, filho de Argemiro e Margarida. Tem quatro filhos, todos com Mariene: Gabriela, Leonardo, Pedro e Gabriel. Obteve dois segundos lugares, uma menção honrosa em concursos de poesia, e tem poemas publicados no Álbum In Verso (Petrobras, Macaé, 1995), BrUSCA Poesia (Pórtico, Salvador, 1996), Antologia Escritores e Poetas da Bahia (Petrobras, Salvador, 1997) e Antologia Poetrix (Pórtico/Scortecci, Salvador, 2002). É editor do Jornaleco On Line, do Pórtico.

Antologia do Pórtico 8

 

Impressão

Curioso, eu vi

as rosas de Giverny

e, como todo que vê

a obra de Monet,

sorri.

Meus anjos

Os anjos do meu caminho?

perdi-os...

(quase todos).

Mas os anjos são assim: vêm e vão,

com um jeitinho...

angelical!

Seus caminhos, diferentes dos rios,

não seguem a gravidade:

há anjos que vêm, há anjos que vão.

Os que ficam, então,

felicidade nos dão.

Antologia do Pórtico 9

Caleidoscópio

Caleidoscópio.

Quero meus versos assim,

mutantes,

permanentemente dançantes,

um chá beneficente!

Murmúrios,

augúrios,

gritinhos de surpresa

- ohs! e ahs! -

e sorrisos deliciados

descobrindo

duplos sentidos.

Meus versos têm

verso

e reverso.

Antologia do Pórtico 10

Janelas

Olho da janela e o que vejo?

Formigas de azulejo

escalam muros de pedra;

anjos de face rosada

velam santos e orixás;

outros anjos, de cara suja,

percorrem praias e ruas,

à cata de latas e lixo.

Em torno, um e outro bicho

passam também a fuçar.

Rabiscos riscam tapumes e uma garatuja

assina-se nas paredes. Solidão flutua no ar.

Janelas, sempre janelas!

Assisto através delas

o mundo que teima em passar.

Gotas escorrem do vidro:

lágrimas? Suor?

Liberdade, Paraíso, Amaralina,

Copacabana, Imbetiba, Ondina,

quantas ruas será que eu, ainda,

percorro até me encontrar?

Antologia do Pórtico 11

Meus versos

Meus versos, eu os escrevo

com a tinta negra da noite escura;

quero-os no rasto do caipora,

perseguindo atentos na penumbra afora

os passos quentes do saci e do capeta.

Quero versos de pés sujos, lama e areia,

quero-os vivos, a correr sem peia,

percorrendo, altivos, recantos imundos,

becos abandonados e trilhas desertas,

captando aqui e ali causos e histórias incertas.

Quero meus versos de pé no chão,

calos nas mãos e olhar na imensidão.

Quatro sombras

Duas crianças caminham pela rua

conduzidas pelas mãos de dois adultos;

a visão dessa cena é muito breve,

na penumbra só diviso os quatro vultos.

Quatro sombras se perdem entre as sombras

percorrendo seu caminho – displicentes?

infelizes? inseguras? Simplesmente

percorrem seu caminho entre as gentes.

Antologia do Pórtico 12

Morro acima, morro abaixo

A cidade sobe, num jeito de presépio,

pelas curvas de nível e ladeiras.

Sobem, acima dela, pipas, pássaros,

nuvens de fumaça, como um véu;

sobem sonhos e orações num escarcéu.

A cada chuva descem,

nas sarjetas,

suores, sujeiras e dissabores,

incertezas e esperanças

que aguardam outro dia,

outra chance, a loteria,

para se concretizar.

Paz

Não sou guerreiro.

Não sou herói.

Guerreiros não vacilam nas grandes batalhas.

Prefiro lençóis a mortalhas.

Não puxaria um gatilho,

mas uma enxada.

Dignidade se constrói

com tijolos e cimento,

calos, calva e cãs.

Medalhas e bravatas? Coisas vãs.

Antologia do Pórtico 13

Três poetrix Sertões

Filitas feito facas,

feito lápides, são estacas

cravadas no coração do Brasil.

Vira-latas

a Marilda Confortin e Manuel Bandeira

Revirando o lixo,

menos que um bicho

é um menino.

Marinheiros

Sobre a pedra, uma gaivota

observa o remador

e estuda sua rota.

Antologia do Pórtico 14

Cantiga do meu morrer

(depois de Ferreira Gullar)

Menina que não conheço,

quando eu me for embora,

me guarde de alguma forma,

me guarde por uma hora

ou duas, no seu coração.

Se no seu coração não couber,

menina que não conheço,

nem uma lembrança minha,

guarde então nos ouvidos

alguma palavra de apreço.

Mas, mesmo se uma palavra

que eu diga lhe valha pouco,

menina que não conheço,

reserve apenas nos olhos,

a imagem de um velho louco.

Se minha imagem guardar

lhe for muito sacrifício,

se vou lhe atrapalhar,

menina que não conheço:

me lembre como um estrupício.

Se essa triste memória

lhe servir só para tormento,

não se preocupe comigo;

me deixe no esquecimento,

menina que não conheço.

Antologia do Pórtico 15

Cheiro de sal

Em algum lugar na infância

o mar me cheirou salgado;

não havia esgotos ou sargaço,

apenas a espuma branca,

a água fria

e a areia de grãos finos.

Tempo! O tempo voa veloz,

como gotas salgadas escorrem

na pele dos meninos.

Meus meninos brincam na água.

Meus meninos andam na água.

Meus meninos passam na água.

Não há o que os segure crianças,

ainda que o queira.

Minha vida segue com eles.

Antologia do Pórtico 16

                                             

Carlos Valadares

Valadares, como bom poeta mineiro, carrega consigo a arte do silêncio na poesia. É no vácuo, no oco, no espaço vazio, no não-dito que sua poesia se faz, se impõe. Afinal, no princípio era o Caos branco do papel, preenchido, então, por suas palavras. Palavra certa, escolhida a dedo. Poesia herdeira de Melo Neto e Guimarães. Carlos? Seu nome deveria ser João!    Goulart Gomes.

 

Carlos Valadares, 57 anos, é mineiro, de Sete Lagoas. Estudante de Medicina na Universidade Federal de Minas Gerais, foi preso e torturado pela ditadura militar por sua ativa participação no movimento estudantil. Permaneceu dois anos na prisão, sem julgamento. Condenado à revelia, e vivendo na clandestinidade, viu-se obrigado a sair do país, terminando seus estudos de Medicina na Suécia e recebendo seu diploma de médico pelo Karolinska Institutet de Estocolmo, em 1980. Durante o período de exílio participou de movimentos pela anistia no Brasil. Especialista em Medicina do Trabalho e em Ergonomia, é hoje, médico da Petrobras, do Sindicato dos Bancários e do Sindicato dos Comerciários da Bahia. É membro do Conselho Regional de Medicina. Enveredando pelo caminho da poesia, já teve poemas publicados no Anuário Pórtico 97, nas coletâneas Videverso, Nosotros e Hermanos, todas do Pórtico. Publicou também o livro Ecos do Tempo (Pórtico), juntamente com sua esposa, Loreta Valadares. Teve poesia premiada em concurso do Sindicato dos Bancários e em Festival de Poesia do Projeto Cultural Petrobras.

Antologia do Pórtico 17

 

Esperança

Aspirar o murmúrio

silêncio de mil lutas

recolhendo sons, despojos

de insanes loucos

sobrevivendo.

Erguer a lança, porém

bandeiras ao alto

cavalgando Rocinantes

em busca da utopia

Tornar-se guerreiro

em tormentosas batalhas

o impossível

viável há de ser.

Antologia do Pórtico 18

Cicatrizes

Cicatrizes

vários matizes

artísticos

de sobreviventes

quase valentes?

Úlceras ardidas

inquietas

ocultas sofridas

inesperadas agonias

de inveja despojo

de alegrias desprimor

desossadas cicatrizes

de soslaio arremetidas

de gentes

mais que valentes?

ardentes úlceras

de fogo despegadas

de humanas gentes

sobreviventes.

Antologia do Pórtico 19

Necrológio

Tanto de estranho oferece a vida

pavor mórbido a face empalidece

obsessiva leitura dos necrológios

procura trêmula de um nome

amigo, parente, anônimo

este morreu jovem, acidente,

atropelo. Matou-se?

Por amor, paixão, desdita

infarto, cansaço, velhice.

O nome, colega de escola, folguedo,

vizinho, a menina da esquina.

Eu me encontro em cada letra

imagino meu nome desfeito

um tempo qualquer, não me lembro

ainda continuo a buscar meu nome.

Antologia do Pórtico 20

Fênix

‘Vida era uma coisa desesperada.”

Guimarães Rosa (Noites do Sertão)

Os escombros

as sombras

amedrontadas

atrás das serras

nas vésperas

do nascer do sol

bruscos lampejos

na vida sem freios

Súplica de beijos

desejos

eterna busca

perto do fim

do que não acabou,

ainda.

Cômodos fechados

oito cadeados

sete chaves

correntes arrastadas

do passado

atrás das serras

nas vésperas

do nascer do sol

apagar as marcas

gravadas riscadas

cicatrizes

cinzas

nas oficinas

do sofrer.

Renascer

com os sóis

girassóis

sobreviver

desabrochar

assustar o medo

de amar.

Antologia do Pórtico 21

Incógnita

Ignorado

ocaso dos paradigmas

quais?

Verdades de seu tempo

aviltadas pelo dogmatismo.

Pioneiros

tirando água das pedras

construindo do nada

política é coliseu de paixões

O que é a vida

vendaval de ilusões

destruídas

tempestades de sonhos

por construir

novo antigo paradigma

Antologia do Pórtico 22

Cinzas de outubro

Escute o silêncio

brado de mudas vozes

de tempos passados,

ultrapassados,

sem futuro.

No trabalho o silêncio se espalha,

fala o corpo.

Encontro de olhares

de viés.

Escute as vozes do silêncio

presságio de tormentas

súbito desconforto.

Escute o fluxo, as correntes

os subterrâneos,

nas entranhas

a varrer silêncios

e dos arbítrios

os donos.

Antologia do Pórtico 23

Quase pânico

Porque a noite esconde tantos fantasmas

despertados pelo insone medo

de perder-se na trama do sono

onde náusea e quiasmas

discutem a existência do nada.

Não durmo e tenho medo

de passos antepassados

memórias desmemoriadas

sons, ruídos, diversos

sombras e luzes movediças.

Não durmo e tenho medo

da ausência do corpo a meu lado

Anseio e sinto falta

de sua presença na casa

do cheiro, perfume o que seja...

O vagar pelos cantos

o sono, o sonho, o nada

o temor de cerrar os olhos

estar só

e não despertar.

Antologia do Pórtico 24

Pedaços de papel

Perdi a conta do que já escrevi

pedaços de papel rasgados,

amarrotados

atirados ao lixo,

ainda com o gosto salgado

das lágrimas, salvos talvez pelo destino

no fundo obscuro de uma gaveta

esquecidos entre as páginas de um livro

que não tive tempo de reler

e continuo a escrever

dores, sofrimentos, amores

para nunca serem lidos

falta a coragem

a oportunidade

o medo de se abrir

de abrir as portas.

Assim é a vida

Antologia do Pórtico 25

Sem vida

A rotina amordaça

é o mofo, é a traça

tece a névoa

entorpece a vida

de nada tinge o tédio

o conflito obscurece

desbota o colorido

trança a rede

da descrença

atormenta o íntimo

aprisiona as cores

imobiliza

destrói os sonhos

ata as peias

correias, cadeias

A rotina odeia o sol

a luz, a vida, o amor,

a rotina

faz morrer

Antologia do Pórtico 26

 

Djalma Filho

Descrever a obra de Djalma Filho é palmilhar caminhos do coração. O escritor, possui uma ruptura no modo de escrever e leva o leitor ao abismo das emoções. O lirismo, mesclado com romantismo e realismo, sacia aqueles que, em pequenos goles, sorvem as letras deste mestre na arte da expressão poética.

Ângela Bretãs

 

Djalma Filho, um poeta baiano. Aos 14 anos começou a interessar-se pela arte de escrever poesia. Eleito presidente do Grêmio do Colégio Antônio Vieira, lutou pelo intercâmbio cultural entre as escolas públicas e particulares. Foi publicado, pela primeira vez, por Fred Souza Castro e arrebatou um 3o lugar no “Concurso Permanente de Contos” do Jornal da Bahia. Aos 28 anos formou-se em Admin. de Empresas.

Em 1982 parou de escrever, para exercer a profissão. Em 1994 passa a integrar o Pórtico, quando recomeçou a escrever com regularidade. Hoje, quase aos 50 anos (02/06), sente que valeu a pena todos os recomeços. Em 1994 participou da Antologia Portais; em 1995, de Brusca; além de várias outras da Scorteccci.

Em 1997 voltou a fazer incursões em contos e publicou pela Editora Blocos, em Encontros, seu primeiro texto longo em livro. Sem deixar de adaptar os autores que admira, continua a achar que o teatro é a forma mais abrangente de unir todas as artes. Ruminador de idéias, só escreveu até hoje quatro peças: As 4 Estações (1978), Pelo Sinal (1994), Entrelinhas (1997) e O Noivo (2002). Mas é da poesia que se alimenta no dia-a-dia!

Antologia do Pórtico 27

 

A foto da gaveta

havia uma foto antiga na gaveta.

Por mais que jurasse de nada saber,

ela chorava o mais calado dos cantos tristes

- ao meu lado -

como se quisesse desmanchar, com seu chover,

o contorno da imagem à mostra, ali, cheia de espanto...

havia uma foto antiga na gaveta usada.

Eu, desconhecedor de todas as lembranças,

- novas ou antigas -

entre seus braços fui morrendo de passado

e nascendo a cada instante de silêncio

ouvi, sem surpresa, seu choro:

- Rasga?...

havia uma foto antiga na gaveta emperrada,

tão escondidinha que parecia até ter sido guardada...

havia uma foto na gaveta,

- só mesmo a foto -

pois a essência da alma que vivo

está ao meu lado fingindo-se de morta

silenciosa e quase triste

por ter me achado numa imagem do passado.

Havia uma foto na gaveta,

só uma foto:

- Coisa boba, não é?

Havia. Não há mais!

Antologia do Pórtico 28

Reforma

tua forma feminina

ainda anda pela casa.

Com ela,

chegaste comigo

qual cabra-cega:

com os olhos fechados por minhas mãos

e com os dedos soltos no ar. Parecias despencar!...

seguiste-me,

corredor adentro,

atrás do caminho que meu cheiro te provocava,

qual um abre-alas.

Apresentei-te à flor de plástico no vaso sobre a mesa,

disseste-me que nela havia cheiro de campo;

enquanto, flutuando sobre o tapete barato da sala,

andavas mercando liberdade

como se em tua volta não existissem paredes, rodapés, portas nem vidraças,

enfim, nada mais que pudesse silenciar

o exercício pleno do amor.

Participei-te a cama

só para não topares os dedos,

- dos pés! -

pois, ainda vendada,

sentes o cheiro da minha espera sobre o lençol de linho. E deitas!...

não há mais nada para mostrar-te:

Toca-me?...

Antologia do Pórtico 29

O noivado

ou Frejat e Vinicius não compareceram

conseguiste achar a qüinquagésima nona gravação de “Luiza”.

Compraste-a de olhos fechados!

sabes, há muito,

da minha paixão pelo Jobim, o Brasileiro,

e da admiração por casamentos quase eternos,

consegui encontrar a oitava gravação de “Codinome Beija-Flor”.

Adquiri-a sem duas vezes pensar!

sei, há muito,

do teu espanto pelos Cazuzas, poesia-alta,

e do desejo suave por relacionamentos estáveis.

Saímos,

cada qual para seu canto,

em busca de uma aliança bem bonita

- com nosso jeito e cara -

para tocar nossos dedos no dia do noivado.

Encontramo-nos,

com os dedos ainda vazios,

na porta de saída de uma loja qualquer

pensando, inevitavelmente, um no gosto do outro.

E trocamo-nos presentes:

dei-te o Cazuza,

deste-me o Jobim;

estávamos noivados!

Antologia do Pórtico 30

Amigos antigos, velhos namorados

invadi teu abraço

até sentir-me guardado

na paz que mora em ti.

Quando, feridos de passado,

éramos os mesmos ou

- até outros -

inseparáveis fingindo-nos de amigos

carimbados por tanta identidade;

e, quando o beijo engravidava,

preferíamos o silêncio,

que faz falta aos cinemas mesmo com pipocas nos fins-de-tarde,

até desapercebermos que a mão da ausência pesa muito

a cada toque desarrumando por um carinho não feito.

Invadi teu abraço o mais que pude,

só então percebi quão infantil-homem fui:

por mais que usasse calça desde pequeno,

por mais que abusasse da barba e do bigode,

por mais que fingisse a mais adulta das posturas.

Depois de invadir

tantos e quase todos teus abraços,

- enquanto pude -

senti, inteira, a arquitetura do teu corpo

nos querendo mais adultos

até acriançarmo-nos e adormecemo-nos!

Ninado pelo acalanto silencioso dos teus bons-dias,

senti-me morador nos teus abraços invadidos,

enquanto, tarde da noite, a paz regride

envelhecida pelo teu pôr-do-sol.

Antologia do Pórtico 31

Silêncio de cinco pontas

há um vago silenciar...

entrei na noite dos teus braços,

adiei o dia

- o mais que pude -

de lábios mordidos

economizando claridade.

tênue, o silêncio é vago.

dois respiros em hiatos

na mansidão mais abstrata da mudez,

- quase mudez -

ditas pelas mãos contornando a alma em forma,

respiro teus ais suados de amor em resguardo

na penumbra de muito silêncio, o absoluto,

enquanto o grito do sol não arde

vago pela noite

em busca das cinco pontas

do brilho silencioso desta estrela.

Antologia do Pórtico 32

Os últimos primeiros

Conheci Deus.

Estaria louco?

Era Deus, sim,

- há pouco -

com dedos paz-amor, insistindo sono às pálpebras,

pressionando-as para o sul, querendo-as fechar.

Com Ele falei o mais humanamente, enquanto pude;

em fração de segundos, tornei-me Dele íntimo:

desenvergonhamo-nos

- Um ao Outro -

nossos segredos.

Deixou-me escapar

- quase sem querer -

que jamais fora brasileiro,

mas tem uma vontade louca de passar férias na Bahia.

(os curiosos, espantados, descerram a janela na minha cara sã)

Há pouco, conheci Deus!

(os amigos lúcidos ainda dizem que pirei de vez)

Falou-me das Suas angústias,

enquanto era eu quem deveria estar deitado no divã

falando mais que a matraca da quarta-feira-de-cinzas.

Deixou-me escapar

- sem nenhum estereótipo -

que fora Um sem-lugar, Um sem-grana,

Um sem-paciência, Um sem-medo

e Um sem-espelho

- principalmente -

só para não constatar a desgraça das semelhanças.

Diverti-me muito com Deus,

- em poucos segundos -

até sentir-me, confesso, necessitado,

tornar-me Dele analista, vigia e confessor.

Nos breves poucos segundos,

- talvez os últimos -

saímos para falar a última bobagem dita entre goles de chope;

até que um amigo

- um daqueles preocupadíssimos com meu surto -

com a língua tropeçando no excesso de álcool e na falta dos óculos,

leu duas laudas e meia de páginas

provocando cochilos aos que não Nos viam;

Antologia do Pórtico 33

enquanto Dele me despedia ao som de um blues-azul,

em noite de puro jazz.

Agora, menos cansado,

só, então, um pouco mais eterno,

descobri porquê Deus pressionou

minhas pálpebras:

Ele tentou fechá-las, sem querer.

Antologia do Pórtico 34

Como mandava o figurino

macia,

sua pele-juventude

atraía homens a todo tempo.

os jovens a cobiçavam,

os adultos até que tentavam,

os mais velhos guardavam admirações,

as crianças

- sempre as crianças -

chamavam-na de “tia”

e torciam para, logo, logo, tornarem-se adultos

para que ela os visse como jovens também.

mas Lêda guardava-se em casa;

ao shopping, raridade,

só ia mesmo para comprar datas em dias de embrulhar presentes,

afinal de contas, tinha pai, mãe, sobrinhos e um namorado ciumento,

incansável em convites para mais intimidade:

com certeza, pensava, inimagináveis prazeres aquela pele macia lhe daria.

recusava-os imediatamente!

Sonhava casar como mandava o figurino:

vestida de um branco inquestionável,

mesmo que não tivesse provado

ainda, segundo as amigas,

a melhor fatia do bolo.

Enquanto isso, excitava

a imaginação dos seus alunos da escola,

a alucinação dos companheiros de idade,

o desejo de quem poderia estar por perto,

o carinho incestuoso dos beijos murchos.

Quietíssima,

ouvia a Billie, a Sarah, o Duke, o Tom, a Ella, a Lena, a Elis

nos vinis de voz macia,

assim como eram as do Vinícius, do Drummond, da Clarisse, da Cecília,

exceto a do João de palavra afiada,

homônimo do quase noivo,

que, num dia qualquer, quis possui-la à força.

Em mil novecentos e noventa e quatro,

sempre com a mesma pele macia,

num primeiro de maio,

Lêda foi velada por um pai amantíssimo, por uma mãe inconformada,

por um monte de alunos, por novos sobrinhos,

Antologia do Pórtico 35

por tios saudosos, babadores de gravatas,

por João, o ex-noivo, agora casado e arrependido.

Lêda morrera virgem,

só de uma coisa se arrependera não ter feito em vida:

ter assistido a primeira montagem, musicada por Chico Buarque,

da peça “Morte e Vida Severina”.

Antologia do Pórtico 36

 

Goulart Gomes

Todos sus libros representan una gran apostación literária para su pueblo e para el mundo.

Roberto C. Alvarado, poeta portorriquenho Em primeiro lugar, você tem talento literário, sim, senhor.

Tem a “expressão”, o que, para mim, foi uma grata surpresa.

Antonio Torres, escritor.

Goulart Gomes(Salvador, Bahia, 1/5/1965) é graduado em Administração de Empresas e pós-graduando em Literatura Brasileira (UCSAL). Criador da linguagem poética Poetrix e um dos fundadores do Grupo Cultural PÓRTICO. Publicou os livros:

Anda Luz (1987), Todo Desejo (1990), Sob a Pele (1994), Trix Poemetos Tropi-kais (1999), LinguaJá o Território Inimigo (2000), Esfinge Lunar e Outros Enigmas (2001), poesias, a peça teatral libertária A Greve Geral (1997), o cordel A Divina Comédia (1989) e Todo Tipo de Gente, contos (2003). Obteve 55 prêmios literários em concursos de poesia, prosa e festivais de música, destacando-se duas Menções pela Academia Carioca de Letras e União Brasileira de Escritores (RJ, 2000 e 2001) e o Primeiro Lugar no Prêmio Escribas de Poesia (SP, 2002). Integrou 27 antologias no Brasil, Cuba, Espanha, USA, Itália e Coréia do Sul e tem, ainda, trabalhos divulgados no México, Portugal e França. Tem cinco e-books com mais de 10.000 cópias distribuídas gratuitamente (downloads). Homepages:

www.goulartgomes.tk e www.poetrix.org. E-mail: jgoulartgomes@bol.com.br

Antologia do Pórtico 37

O analfabeto ideológico

ou Carta Aberta a Herr Brecht

O pior analfabeto é o analfabeto ideológico.

Ele desconhece a importância

do respeito ao ser humano

e é capaz até de destruir tudo à sua volta

pelas suas crenças.

Ele é o pai de todas as guerras.

O analfabeto ideológico é tão burro

que ignora que milhões de pessoas foram mortas

em Auschwitz, em Kronstadt, no Arquipélago Gulag,

em Hanói, em Saigon, em Leningrado, Havana,

Hiroshima e Nagasáki

pela ignorância dos politicamente alfabetizados.

O analfabeto ideológico já não se lembra

do napalm atirado em crianças, no Vietnã

dos tanques esmagando jovens em Beijing

nem da Primavera de Praga.

Ele esqueceu dos desaparecidos

no Araguaia, em Buenos Aires,

em Santiago do Chile.

O analfabeto ideológico

explode bombas contra católicos e protestantes

em Dublin

e contra judeus e muçulmanos

em Jerusalém.

Não sabe o imbecil que da sua ignorância

nasce o mutilado, o órfão,

o neurótico de guerra, a viúva,

las madres de Plaza de Mayo,

as ditaduras.

Tudo isso porque

o analfabeto ideológico tem uma visão estreita,

uma amnésia do passado

e nenhum compromisso com o futuro.

Já leu todas as biografias dos grandes estadistas,

mas nunca a do Mahatma Gandhi,

que foi líder sem ser governante

e por isso desconhece ahimsa:

a lei da não-violência.

Em seu radicalismo

ele não ouve, não respeita, não conhece

(ainda que seja para criticar)

outras ideologias, que não a sua.

Antologia do Pórtico 38

Ele está preocupado em promover

a discórdia, o confronto,

e não tem o menor respeito à Vida:

nem à sua, nem à dos outros.

Antologia do Pórtico 39

O outro lado da Lua

é preciso ter carinho

é preciso ter cuidado

com o fino prazer;

não há de se fazer assim

como à vulva dela

toque-se-lhe de pelica, a luva

perfeita, cilíndrica

não havemos de adentrá-la

afoitos

trata-se de um outro coito

sazonal

e para tal é necessária

certa arte

profundo, carnudo, justo

divino prazer anal

e que também os dedos

façam sua parte

neste bacanal

duplicando, pelos lábios

os sentidos

que seja muito

que seja vasto

(e até, por vezes, virgem, casto)

entre o supremo e o visceral

Antologia do Pórtico 40

L’Ana

A tarde amorenava o dia

permutando cores onde pousava

o seu toque

Lançava sobretudo sua tez

abria um leque à cara do sol

e tingia de penumbra os espaços

dos olhos dela fugia a claridão

e à volta se tingia

aquela cor de pele

espargindo a noite

A quem contar segredos?

Inútil degredo dentro

de nós mesmos

ânsia de ouvir espelhos

clamor de anos que não vieram

L’Ana e su’alma de caranguejo

subterrânea/submarina

tenazes fortes e cor baiana:

a mais doce mistura destas tendas;

seu corpo espraia-se

num descobrir de terras macias

além do Oceano (rio mais grande,

lágrimas de Orixá)

dança, noturna, feito estrela

lua-mãe cheia nos leitos

de um homem e dos rios

fazendo canastras de tarot

Só L’Ana amortece a dor

no parapeito do riso

e seus lábios rubros e ciganos

traçam caminhos, deixam vestígios

úmidos no meu corpo

e palavras em gemidos

Antologia do Pórtico 41

Tempo farpado

Matamos o tempo; o tempo nos enterra

(Machado de Assis)

arame farpado

o Tempo recurva

até os pregos;

nos ferros

depõe suas marcas

amarga as madeiras

descendo as ladeiras

dos dias

A flor impera

promessa da semente

e do húmus da terra

espinhos e farpas

não cortam o vento

(o Tempo se cala)

a pétala fala

também somos eternos

Antologia do Pórtico 42

Corrente

que seu silêncio me fale

que sua voz me cale

deságue-me, em sua foz

Desobediência Servil

sob o xador

completamente nua

# # # nenhum pudor # # #

Dádiva da vida

a ninguém devia nada

no colo, apaixonada

deu por si

Antologia do Pórtico 43

O touro

com sorte verás o touro

no caminho para casa

em seu nariz uma argola

brilho dourado nas asas

um chifre mocho da queda

que tomou em uma escada

e a língua verde-oliva

pela erva ruminada

os olhos são como as luas

do planeta marciano

ápis, nandi, touro minos

boi do egypto, boi troiano

com sorte o touro verás

sem ires sequer a granada

voando sobre o cerrado

galopando na chapada

talvez, se abrires os olhos

enxergarás muito mais

o touro e sua manada

povoando pantanais

se o vires, beija o focinho

do bicho, que é pra dar sorte

alisa seu pelo de prata

acima da anca forte

com sorte verás o touro

e seu rabo de dois metros

com suas patas de bronze

e o falo como um cetro

talvez ele até puxe prosa

se estiver animado

e te conte como virou

este animal encantado

joga basquete em chicago

aqui e acolá puxa arado

no mac vira alimento

na índia, deus, seja louvado

europa e pasífae

Antologia do Pórtico 44

habitaram seu harém

ele pasta na manjedoura

em Wall Street também

com sorte verás o touro

se tiveres merecimento

guarde um tanto do estrume

que é o melhor ungüento

e quando estiveres indo

não faças qualquer alvoroço

com uma guirlanda de flores

adorne o seu pescoço

que o touro ficará

muito mais que agradecido

pois o boi é caprichoso

boi-tatá, boi garantido

Antologia do Pórtico 45

Alunissar

um dia chegarei com passos firmes

sem cavalo

e não direi palavra;

o simples gesto da presença

apaga mágoas

e pressupõe surpresas

será um dia comum

- nenhuma ânsia -

com sol, nuvens e pássaros

no rádio, alguma música romântica

estará tocando

a torneira da pia, como sempre

pingando

um dia chegarei em silêncio

e tudo flutuará

por absoluta falta de gravidade

Istmo

ela, tão triste

ele, tão ausente

nem a lua se fez presente

Antologia do Pórtico 46

José Inácio Vieira de Melo

Teu caminho é grandioso. Tens um indiscutível, notável talento poético, um talento que faz de ti uma das grandes vozes da nova poesia brasileira.

Moacyr Scliar

 

José Inácio Vieira de Melo Nasceu em 16 de abril de 1968, no povoado de Olho d’Água do Pai Mané, município de Dois Riachos, Alagoas. Passou a infância e a adolescência entre as cidades de Palmeira dos Índios, Arapiraca e Maceió. Mudou-se para a Bahia em 1988 – município de Maracás –, onde passou uma década morando na roça: Cerca de Pedra. A partir de 1998, firma residência em Salvador, onde faz graduação em Jornalismo, na Universidade Federal da Bahia (Ufba). Publicou os livros Códigos do Silêncio (Selo Editorial Letras da Bahia, 2000) e Decifração de Abismos (Aboio Livre Edições, 2002). Obteve o primeiro lugar no prêmio literário de 2001/2002 da revista de literatura, crítica e arte Iararana, instituído em homenagem ao poeta Sosígenes Costa. Tem pronto e inédito o livrete Luzeiro (Três cantos peregrinos) e o livro A terceira romaria.      E-mail: jivm.inacio@ig.com.br

Antologia do Pórtico 47

Caramujos

Os caramujos da Ribeira do Traipu

mugem em um tempo que se foi.

Os caramujos eram os bois da minha boiada.

Quando os invocava era prontamente atendido,

mas eles tinham lá seus nomes e seus matizes

(e ali já estava o poeta batizando as coisas):

e vinham Manjerona, Paixão, Diamantina,

Fachada, Chuvisco, Carnaval, Meia-Noite,

e vinha toda a vacaria de caramujos

encantar aqueles dias com seu leite de sonhos.

De repente, dava um redemoinho

na minha cabeça de vento

e já era outra história:

Ivaldo, numa atitude inaugural,

– possível apenas para quem goza

da sabedoria dos cinco anos –

bradava para que fossemos

ouvir o mar nos caramujos.

[A terceira romaria – livro inédito]

Antologia do Pórtico 48

Deserto

Nem o deserto do Saara mais todo o Sertão

são desertos quanto o eu deserto.

E segue o peregrino na aridez dessa demência:

deserto dia – noite deserta: a mesma intensidade.

E de repente vejo o que não vejo,

o vôo que sempre levanto e nunca voei,

e assomam os meus fantasmas:

anjos e demônios e poetas e vampiros,

putas e bruxas e santas e fadas,

deus e deuses e musas e a mulher,

vaqueiro e cavalo e gado e cachorro,

música toada, música embolada, música zoada.

E Moisés Vieira de Melo – meu avô –

tangendo esses bichos todos

dentro do deserto do romeiro de mim.

E os desertos cantam na imensidão do nada,

e canto este canto meu (porque de dentro):

eu não sabia do caos do eu,

eu não sabia da miragem que tudo é,

eu não sabia da angústia,

eu não sabia do gozo.

Eu, sabiá...

O deserto de mim diante de todos os olhos.

E assim segue o peregrino

– nessa romaria que o sufoca e o deleita –

em busca de oásis,

abrigo de mim.

O peregrino – deserto a buscar.

[Decifração de Abismos]

Antologia do Pórtico 49

Espelho

Em que espelho ficou perdida

a minha face?

Cecília Meireles

Que ninguém se engane:

os caminhos são tortos

E no sertão do ser

– deserto e mar

nossos de cada dia –

o outro nome do nome:

HOMEM

E no oráculo antolhar:

a imagem é a dor escarlate

de um labirinto

onde vago vago

E indaga o oráculo:

– Qual a tua graça?

Como o quem? Saber como?

Tal Torquato com fé ficciono

e confecciono a palavra

Poeta há de ser a graça

E indaga o oráculo:

– O que fazes de teus passos?

O que dizer dos rastros

conquanto já não são meus?

Como aquele Minotauro cego

sigo pela noite

guiado pela menina poesia

E o oráculo:

– Não haverá mais tempo

apenas a poesia:

Mãe e Manhã

Antologia do Pórtico 50

[Códigos do Silêncio]

Antologia do Pórtico 51

15

 

A primeira vez não tinha paredes,

havia um voyeur: a Lua.

Um cajueiro frondoso

abençoava aquela descoberta

farfalhando suas folhas,

e das folhas secas

que buscavam a terra: o colchão.

E tudo conspirava para o êxtase:

os olores dos cajus,

o agridoce gosto da deusa morena:

musa canora que entoava gemidos

– cantigas sopradas pelos deuses.

Na primeira vez,

senti, pela primeira vez,

o mistério das estrelas.

E as vacas pastavam

na mansidão dos campos,

na imensidão da noite.

[A terceira romaria – livro inédito]

Antologia do Pórtico 52

Epitáfio para Guinevere

Cavalos já foram pombos

de asas de nuvem.

Domingos Carvalho da Silva

Meus cavalos choram por ti, égua de olhos azuis.

Não mais invadirei o vento montado no teu galope.

Que fique inscrito na tua lápide

o verso de lágrimas dos meus cavalos.

Para tu, que trazias os céus dentro dos olhos,

o relinchar da paixão pagã

dos cavalos que trago dentro de mim.

[Decifração de Abismos]

Antologia do Pórtico 53

Mãe Filha

Ela não oferecia pão a um carnívoro,

ela era a carne e a caridade,

era a ovelha dos desgarrados.

A cruz recebia entre as pernas,

o seu sino era no meio das pernas,

ela era a sua própria igreja.

Ela tinha a ferida e a cura,

e todos os homens salivaram ali,

e todos ganiram o lamento do sino.

Era a vida dA Casa das Primas,

ninguém jamais saiu daquele templo

seco em seus apetites.

Para uma sede, outra sede maior;

para a solidão, os sentidos de Mãe Filha

e de todas as suas discípulas – as primas.

[A terceira romaria – livro inédito]

Antologia do Pórtico 54

 

Loreta Valadares

A poesia de Loreta é de uma beleza indizível, talvez por ser tão incomum. Sua matéria-prima é a memória, o passado (tão presente!) e aquela coisa - quem sabe exatamente o que? - que nos falta. Poesia sentida, feminina, forte como uma mulher. Como ela é, esta “menina”, simplesmente uma das melhores poetisas da Bahia.                Goulart Gomes

 

Loreta Valadares, 60 anos, é nascida em Porto Alegre, RS, mas passa sua infância e adolescência em Salvador, tornando-se baiana de coração e de direito, pela generosidade da Câmara Municipal que lhe concede, em 1994, o título de Cidadã de Salvador. Forma-se em Direito pela Universidade Federal da Bahia na rebelde década de 60, tendo destacada atuação no movimento estudantil. Perseguida pela ditadura militar, é presa e torturada em 1969, permanecendo um ano no presídio de Linhares, Juiz de Fora, MG. Ao sair da prisão, descobre grave doença cardíaca. Julgada e condenada à revelia a 3 anos de prisão e, por conta da condição cardíaca, vê-se obrigada a deixar o país. Durante o exílio em Estocolmo, trabalha como jornalista e comentarista da Rádio Suécia e tem ativa militância nos comitês de luta contra a ditadura no Brasil. De volta ao Brasil, em 1980, torna-se professora de Ciência Política da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBa, aposentando-se em 1993. Seu contato com a poesia é antigo, desde os tempos de estudante, mas só tem sua primeira poesia publicada na antologia Nosotros, do Grupo Pórtico. Depois, participa do Anuário 97, e das antologias Hermanos e Mulheres 10, do mesmo grupo. Casada com Carlos Valadares, publicam juntos, em 1996, o livro de poesias Ecos do Tempo (Pórtico).

Antologia do Pórtico 55

 

Não te esqueças

de mim

minha memória...

a vida que levei

as lutas que ganhei

e as sem vitória.

Não te esqueças

de meu sonho

a gargalhada

e de minh’alma

apaixonada

que te fique

a lembrança

enlouquecida

de viver

intensamente

aos arrancos

sem prantos

totalmente

sem fôlego

Paixão

descabida

de revirar tudo

tudo

tudo...

Não te esqueças

de mim

minha angústia

o tempo

que perdi

as portas

que bati

a tormenta

o fracasso...

Que de mim

te recordes

a ânsia

de ultrapassar

limites

e arrancar

raízes

Maldita

teimosia

de não desistir

Antologia do Pórtico 56

nunca

nunca...

Antologia do Pórtico 57

Vértices

conexos

ângulos

inversos

caminhos

díspares

delicada

flor

(recém)

desabrochada

em terreno

árido.

Para onde vai

o que não foi feito?

Ah! Se eu soubesse...

Ah! Se eu soubesse...

Antologia do Pórtico 58

Sei tudo

e não sei nada.

Vida transpassada

alma inquieta

sonho sem limite

estreita passagem

perfeita miragem...

E

não sei nada

de tudo.

Não posso ter perdido

o que nunca tive

nem ter vivido

onde não estive

não posso ter chorado

a lágrima não vertida

e sequer ter aplacado

essa paixão ensandecida

de revolver a vida

tão completamente

e me tornar cativa

dos caminhos

sinuosos

da liberdade

(re)nascente.

Antologia do Pórtico 59

Mar

maresia

maremoto

mar morto

marulhar

maravilha.

Mar de rosas

mar alto

encapelado.

Mar aberto

maré cheia

longe mar

beira-mar

Marejar

Lacrimar

.................

Navegar...

navegar

onde-mais

em-que-mar....

Antologia do Pórtico 60

Coração,

para quê?

Eixo

do corpo

qual

eixo

do mundo

a executar

a rota

da esfera celeste.

Coração,

para quê?

Viver?

Sentir?

Ou, simplesmente,

com Fernando Pessoa,

“sentir com a imaginação

e não usar o coração”?

Coração,

para quê?

Antologia do Pórtico 61

Tento

não ficar

triste

mas a dor

existe

e a espera

fere

como faca

em ponta

apontando

o instante

que pisca,

pisca

e não brilha...

(e onde é

que está

meu livro

de inglês?)

Não achei...

Não achei...

(enquanto esperava na fila do banco)

Antologia do Pórtico 62

Sono

esquisito

infinito

sonho

espera

de tempos

encantados

de desejos

impossíveis

de trilhas

invisíveis.

Abro

os olhos

e espio

pela janela:

nenhum sinal

da noite.

Flor

Floreio

Florada

Flor-de-lis

Flor-da-noite

Floral

Floresta

Florete.

Ferino

Corte

Antologia do Pórtico 63

Humanas vozes

em gritos

de silêncio

clamam

da vida

uma resposta

Vazados olhos

em visões

sinistras

espreitam

no mundo

a loucura

Paira

sobre ondas

revoltas

(a) tormenta

do tempo

presente

Feixe

de luz

e sombras

atravessado.

Punhal

cravado

no peito

da humanidade

Antologia do Pórtico 64

Luiz Flávio doPrado Ribeiro

Procedente de uma legítima estirpe de escritores, Luiz Flávio não deixou por menos: aliando a extroversão carioca e a “ginga” baiana, consegue transitar com facilidade entre a poesia e a música, enriquecendo-as de ritmos e imagens, romance e alegria.

Goulart Gomes

Luiz Flávio do Prado Ribeiro, é baiano há 22 anos (originalmente carioca). Engenheiro e petroleiro. Participou de n antologias pelo Grupo Cultural Pórtico, tendo lançado um livro que reuniu três gerações, contando com trabalhos de seu avô e de seu pai: Poesia do Prado Ribeiro. Com o grupo musical Paroano Sai Milhó, do qual participa há 13 anos, gravou três CDs. Casado com Christiane, tem 4 filhos, 2 violões, 1 cavaquinho, alguns sonhos e muito amor.

Antologia do Pórtico 65

 

Buarquianas

Ele já vai

e eu nem me despedi.

Vai resoluto,

ajeitando a gola

e eu aqui de camisola

de cor de luto.

Ele já foi

e eu nem me despedi.

Incontinenti,

bateu a porta,

assim como quem corta

o ar da gente.

Por quê assim,

se tantos anos se passaram em alegria,

e outros tantos, tantos dias,

tanta estrada,

entre prantos de esperança,

entre juras de mudança,

pra levar a nada ...

Fica a vida tão pequena,

a cama grande demais,

a saudade vem sem pena,

a tristeza não fica atrás.

Antologia do Pórtico 66

Homenagem à RPBA

Samba composto em Candeias (Disul), 1983

Jorrou

o primeiro poço em Lobato

e ali começou de fato

um grande movimento

que teve o seu momento

com a Lei 2004

Fruto das aspirações brasileiras

de salvaguardar o país

da intromissão estrangeira

essa lei nos garantiu o monopólio

para industrializarmos

o nosso petróleo

E após tantos anos a velha Bahia

que não tem mais a primazia

dos novos e grandes achados

ainda trabalha com valentia

pra produzir

o seu volume provado

Prestamos a nossa homenagem

a essa Região de Produção

e de tradição:

Água Grande, Taquipe, Araçás, Lamarão

Fazenda Bálsamo, Miranga, Remanso, Dom João

Candeias, Brejinho, Imbé, Conceição

Malombê, Buracica, Mata de São João

Jorrou ...

Antologia do Pórtico 67

Samba para o trabalhador do Recôncavo

Todos os Santos desceram do céu

com arco-íris, pincel e cinzel

e assim criaram, num lindo desenho

um monumento de arte e engenho ...

Mas o Recôncavo

não é só a riqueza de seu solo encantado

não é só a beleza e o nome histórico

é também o suor de seus anônimos heróis

que pela vida

vão deixando a força e a voz

É também a viagem

passagem num mundo de fé e coragem

onde a nobreza é a nascente e a foz

Por isso navega ...

Navega, navega

barcaça de cacau

nas ondas tão doces do canavial

Moinhos de sonho são dor e prazer

mão na massa, pé na estrada de massapê

Cavalga, cavalga

cavalo-de-pau

explora esses campos com alto ideal

que a luta, conduta de vida,

é força moral.

Salve o trabalhador:

Herói nacional !

Antologia do Pórtico 68

Nossa parte

Enchi do vaso

o espaço terra.

Plantei

adubei

reguei.

Hei de colher,

que a flor

não erra.

Árvore que se planta

e rega,

não nega

a seiva.

O fruto-futuro,

sem eiva.

Antologia do Pórtico 69

Rose Rosas

Uma característica marcante da poesia de Rose Rosas é ter a medida exata do erotismo: nem exageradamente vulgar nem sutilmente pudica; excitante, sem ser banal, ela escreve como as grandes poetisas que seguem este estilo souberam fazer, com a leveza e a profundidade típicas da sexualidade feminina.

Goulart Gomes

Rose Rosas, nascida sob a influência do signo de Aquário, nasceu no Rio de Janeiro, no dia 23/01 onde foi registrada com o nome de Rosemary Barreto. Ainda menina veio para a Bahia, onde estudou e criou raízes profundas. Baiana de coração, fez Química (ETFBA) e Licenciatura em Matemática (UCSAL), além da faculdade da vida, onde ganhou uma centena de amigos. Mudou radicalmente na profissão ao aventurar-se na área de Informática, onde atua até os dias atuais. Tem uma familia muito amorosa, que lhe enche de mimos e atenções, gosta de ler, escrever, pintar, dançar, muita praia e jogar conversa fora com os amigos. Participou por oito anos do Coral da Petrobras, três deles como coordenadora; participou do Grupo de Teatro da Petrobras durante três anos. Fez, entre outras peças, Cajazeiras City, apresentada no Teatro UEC. Faz parte do grupo musical Nós e Voz, junto com mais três colegas, onde interpretam MPB. Fundadora e ex-diretora cultural do Grupo Cultural Pórtico, participando de diversas antologias, tais como: Tempoema, Nosotros - Brasil/Espanha, Anuário Pórtico e Mulheres 10, dentre outras.

Antologia do Pórtico 70

Este momento...

Beijar bocas que não são as tuas

deixar-me dedilhar

por tons que não são os teus

misturar salivas

odores, energias vãs

não-sãs... ilusão...

inútil vontade

de preencher o vazio

da ausência deixada

pelo brilho dos teus olhos

pelas “meninas” imersas de luz

pelo cheiro não dado

e o beijo não roubado

queria ter sido mais louca

optado pela perda da razão

gritado sobre tua pele

num êxtase desconexo...

queria tão pouco...

um colo, um afago talvez

mas fostes mais técnico

traçastes metas, parâmetros

métricas... paretos...

avaliada sobre distâncias relativas

desvios-padrões

Não consegui a média exata

da quebra de tuas barreiras

e vencida... recuei

calei...

e assim permanecerei

em respeito à tua fuga

abrandarei o queimor em meu corpo

apagarei o fogo e

jogarei água nas cinzas

para que mais tarde

desavisadas ou remexidas

não renasçam em pequenas fagulhas

evidência concreta

de um vulcão adormecido...

por não ter te consumido...

junto comigo

Antologia do Pórtico 71

Quero caetanear esta poesia

Para calar a voz e o eco

Que vaza da minha fantasia...

Quero ser inexata

E ao mesmo tempo objetiva

Ser campo minado

de rimas e versos loucos

para ser então compreendida

sarar a tua febre

e ser o antídoto dos teus queixumes

quero ser luz de vaga-lumes

do topo o cume

a cor da lambida

dada em teu ventre

a onda nascida

desta invasão atrevida

ser a ogiva ativa

que explodirá... vida!

hoje, como antes

em tons de amantes.

Antologia do Pórtico 72

Bruxaria

O gato brilhou no escuro da noite

Seus olhos viraram brasas

Pontos de fuga

Nas trevas do meu eu

Meus pelos emergiram em riste

Sugaram a energia da lua

Acordou a feiticeira

Voou no espaço...

À velocidade da luz

Pactuou com o silêncio

A quebra dos paradigmas

Dos feitiços traiçoeiros

Dos sacrifícios insanos

Do destino em desalinho...

Quem se atreverá a mudar o rumo?

Desviar-se da trajetória?

Um uivo ecoa no breu

Sai da terra um lamento

Meus pensamentos invadem

As mentes dos desesperados

Meu coração se apieda

das dores dos homens...

Lanço uma praga ao vento

Transmuto a insanidade do mundo

Amanheço renovada...

Antologia do Pórtico 73

Ortodentaria(mente)...

Entre dentes de cercas quebradiças

desnudava-se um céu sem estrelas...

havia um riso escondido pelos cantos

tentando em vão não explodir...

O momento de dor jazia no passado

restava a incerteza da beleza perdida

de coisa sobrando, de corpo-estranho

de dificuldade em digerir...

O motivo de piadas dos amigos

o contorcionismo diante ao beijo amado

a sensação de rosto crescido...

e arame-farpado se partindo...

E nada incomodava mais do que o tempo parado...

a vontade calada de acelerar os dias

a aceitação momentânea de vencer as horas

pra surgir mais bela... e morder inteira... a poesia...

Antologia do Pórtico 74

Para “Boca Suja”

Deixe que a minha língua

Avance errante e ande

Pelos quatro cantos do teu corpo...

E sacuda o pó, o mofo

Lave-o de forma íntima

Lasciva e ardente

E te consuma inteiramente...

Até que quedes morto

De gozo, da luz de enchente

Que parida das profundezas

De tuas entranhas

Nos alucine e devore

E mesmo sendo ínfimo

O tempo presente...

Que possamos

Nos perder em nós

Completamente...

Antologia do Pórtico 75

Saldo de guerra

Jamais senti tamanha ira

Emergirem das entranhas

Como lavas desnorteadas

Sanguinariamente atentas

A arrasarem tudo à volta

Suei o odor dos desvalidos

Dos que já não temem mais a morte

Apenas esperam a trajetória do míssil

Brinquedos de marionetes dos mais fortes

Totalmente incoerentes

Abuso de poder

Força bruta infantil

Quedas-de-braços

Leis de um louco prepotente

Deformando tudo à frente

Mentirosos donos do mundo

Salvas estão apenas as nossas almas

Estas sim... imunes, perenes e eternas

Jamais dolarizadas pelo poder

Que mata, explora e mente...

Podem escravizar nossa história

Humilhar-nos e destruir nosso lar

Seremos vegetais em escombros

Filhos órfãos, mulheres sem teto

Serpentes arrastando-se no vazio

Jamais perderemos a força

Da reconstrução de nossas vidas

Até cicatrizarmos nossas feridas

Sobreviveremos...

Antologia do Pórtico 76

Saudade

E ele chegou sorrateiro

Alinhando sua língua

Aos meus apelos

E se enroscando em mim

Como um novelo...

Desvendando-me os véus

Desbravando-me inteira

Enchendo meu ser de “Todo Prazer”

E de promessas de terra e céu...

Mãos, mentes e fusão de corpos

Cavaleiro de flor nos dentes

Foi menino metido a valente

E incendiou-me por dentro

Ateando-me fogo no ventre

Fez arder minhas entranhas

E fez-me teia entre-coxas

Inundando-me de manhãs...

Sem me dizer adeus, ele partiu

Deixando-me só entre os lençóis

Com teu cheiro tatuado no quarto

E a saudade dilacerando minh’alma...

Senti o acariciar do silêncio

Quedei muda, tamanha ausência no ar

Em meu rosto nasceu um sorriso

Certeza que à noite... ele me inundará.

Antologia do Pórtico 77

Seja um dia após o outro

leve embalar de uma oração

Seja o teu corpo todo exposto

As notas tortas desta canção

Que seja louco meu despertar

serpenteando-te na terceira dimensão

seja o teu riso o meu porto

e os teus olhos... a direção

Que sejamos livres do pecado

Assim no céu, como na guerra

E sejamos frutos do amor

E de toda paz que nele encerra

E se não tivermos esperança

Que renasça a luz no fim do túnel

E se farte de gula toda a treva

Sem quebrantos ou covardias

Possa eu num só momento

Desnudar toda a magia

De querer-te tanto e tanto

Sem pudor nem fantasias

Para vivermos intensamente

a cada dia...

Antologia do Pórtico 78

Vladimir Queiroz

A poesia de Vladimir Queiroz é um achado pluralista: afinal, é múltipla, latina, ibérica, gaulesa, romana, teutônica, bretã, negra, mulata e branca.

Goulart Gomes

Vladimir Queiroz herdou do pai o gosto pela poesia. Seus primeiros versos foram escritos na infância. Aos 12 anos venceu um concurso escolar de crônicas. Participou do jornal Categoria, periódico de circulação interna no colégio onde estudava, tendo aí publicado seus versos, ainda em Feira de Santana, sua terra natal. Aluno exemplar, era mestre em matemática, química, literatura, língua portuguesa, história.

Em 1981 transfere-se para Salvador, formando-se em engenharia química no ano de 1986, porém nunca deixou de escrever. Em 1987 ingressa na PETROBRAS, especializando-se em engenharia de petróleo. Por um tempo a literatura andou esquecida, mas não abandonada. Em 1990 volta a escrever com disciplina e em 1996 publica seu primeiro livro: Seres & Dizeres (Pórtico Ed.). Embora a intensa atividade profissional mantenha-o afastado do círculo lítero-cultural, em 2001 publica o livro Terracota (As Letras da Bahia), uma exaltação ao homem sertanejo, um retrato da origem familiar. Sobre esta obra Franklin Maxado escreveu: “É poesia pós-moderna misturada ao concretismo para construir suas imagens”. Para 2003 a promessa de publicar mais dois livros.

Antologia do Pórtico 79

 

Avesso

Eu quero que as mãos se separem

e entrem por dentro das vísceras dos animais

sintam o cerne e não se desesperem

encontrem o ser

e percebam o mundo do outro lado da pele.

Eu quero encontrar o sentimento,

meu alimento,

e gritar aos ares, aos ares

e respirar a tribo dos ecologistas geniais;

defumar-me na fumaça

dos ancestrais,

banhar-me no Ganges, purificar a alma

e “desvestir” a pele dos lobos colossais.

Eu quero no fim de tudo, no fim da tarde

tua manha descabelada

tua vinda descabida

a me apertar contra o peito

deixar-me sem jeito

dois animais.

Eu quero que as mãos se separem

entrem por dentro das vísceras

e descubram mais

descubram mais...

Antologia do Pórtico 80

Canto da terra

A terra do rouxinol

é roxa,

rocha exposta emergida

ferida - roncha.

A terra do curió

é branca,

sanca de amor brando

soando manca.

A terra da saracura

é muito escura,

faz cócegas num córrego

e dura.

A terra no canto,

canta

em pranto.

Antologia do Pórtico 81

Chuva na serra

Após a chuva na serra

sopra aquele vento,

penetra no osso e gela a alma.

Mas a paz e a calma são sublimes

e transcendem.

Invade-me um vazio,

uma sensação de flutuar,

e por mais que te pegue,

sinta a pele e o braço,

é como se estivesse no ar

pétala por pétala.

A neblina deixa-me ver unicamente

um contorno de serra,

uma indefinição curvilínea...

Defronte a mim só uma imagem,

uma moldura impressionista,

e nada mais.

Antologia do Pórtico 82

Emoção

Solta e rebelde vai a emoção

voa

visita estes recônditos mundos

inesperados e fascinantes

desperta a vontade

cria insanidades

e se desmancha pela cria

(que chora e esperneia);

mancha o papel de cores

combina amores

curte dissabores

e ronda a madrugada.

Solta e rebelde vai a emoção

não impõe limites

nada teme

sofre de tensão

sorri

sente calor

e calafrios.

Antologia do Pórtico 83

Formas

A inércia que constrói o tédio

precisa ser vencida

e do atrito louco se desvencilha

entrando em erupção o vulcão

de formas e cores.

Formas ainda não concebidas

do objeto retraído

nas reentrâncias vastas,

do vasto mundo cerebral, incongruente;

que indolente, o Homem, ignora.

Misticizada e lírica

do prazer contrito

a magia oculta

se solta.

E a forma estranha, para o ser

despercebida, algures repousa

e surge mais tarde

no fim da tarde, talvez!

Antologia do Pórtico 84

Global

Tem um apelo global junto a mim,

mas a minha pele ainda é local,

aninha-se numa árvore conhecida

onde crescem musgos após a chuva.

Quer suar no Saara e sonhar por miragens;

desfrutar os Fiordes, ser um lorde britânico,

mas não dispensa o balançar de rede

o vento soprando frio em noite de lua cheia.

Tem um mundo global que me faz chorar na

Namíbia,

deixa-me distante, ouvindo circunspecto um som

mongol,

sou oriental por um instante,

sinto-me repleto de Mahatmas:

transcendo,

mas tem um mundo local que a mim traz bem cedo

o cantar de um pintassilgo,

e a minha cama enche-se de êxtase.

Tem um mundo global que imanta os pólos

e desmancha os sonhos,

mas tem um mundo local que me toca de repente

deixa-me carente de você, cheio de amor.

Antologia do Pórtico 85

Hábito

Se acordo cedo nas manhãs de domingo

não é porque vá viajar

nem tampouco tenha compromisso;

ninguém me chamou,

não tocou o telefone.

Se acordo cedo nas manhãs de domingo

é porque adoro ver o sol nascer

sentir aquela calma matinal

ouvir o curió que canta na casa ao lado;

ver as primeiras pessoas que passam:

o vendedor

o jornaleiro.

Se acordo cedo nas manhãs de domingo

é por força do hábito.

Antologia do Pórtico 86

Lamparina

A lamparina acesa

clarão de choupana

brasa

incendiando o silêncio.

Filete de luar balançando ao vento

mil marionetes negras:

fantasmas das trevas.

O nada reintegrado ao pensamento:

carícia de tempo, carência de voz

dissolvendo a escuridão

sob o relento lento.

Antologia do Pórtico 87

Mestre

O ancinho na mão do mestre

recolhe as folhas caídas

ao chão agreste.

Consumidas pelo tempo,

vencidas por um ciclo de vida

que as fez nascer.

O mestre olha cada folha e

reconhece o broto tenro de outrora,

que viçoso e verde despontara.

E segue o mestre na sua faina diária,

centenária!

Antologia do Pórtico 88

Zunido

O guarda apitou no sinal;

os paralelepípedos sentiram o zunido

e trepidaram:

passaram homens correndo de tênis

velocípedes

quadrúpedes;

passaram cigarros, chapéus e menestréis

poetas e guerrilheiros

aves de arribação;

passaram peruas (quase nuas)

vozes

beijos;

passaram aos solavancos

saltimbancos

avós de quarentena

tamancos das mil e uma noites;

passaram carroças e troças

tigres de dente de sabre

(tigres de “bengala”)

jacas maduras;

passaram gatunos

diversos e unos;

passaram...

 

 

Fonte:  Revista Agulha

 

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